Apesar de todo o conhecimento acumulado em pesquisas biológicas, a natureza ainda guarda inúmeros fatos desconhecidos pela humanidade. E, ao contrário do que muitos pensam, não são só nas expedições a áreas remotas da Amazônia ou nas profundidades do oceano que são descobertas espécies de animais desconhecidas pela ciência. Na Reserva Ecológica do IBGE, a menos de 30 km do centro da capital federal, foi identificada uma nova espécie de peixe. Com autorias de Marcelo R.S. de Melo (USP), Mauro C.L.B. Ribeiro (IBGE) e Fávio C.T. de Lima (Unicamp), a descoberta foi relatada em artigo na revista científica Neotropical Ichthyology no dia 29 de janeiro de 2021.
A nova espécie, batizada como Characidium onca, é um peixe de cerca de quatro centímetros de comprimento, de coloração amarela-dourada e pintas pretas. Tais características inspiraram os pesquisadores descritores da espécie na escolha do nome, uma referência à pelagem das onças, que tem como nome científico Panthera onca.
Estudos como esse, que culminam com a descrição de uma nova espécie de organismo, se iniciam com a coleta de indivíduos na natureza que são sacrificados e passam por tratamentos para conservar indefinidamente suas principais características anatômicas. São realizadas diversas avaliações da anatomia externa, medição de tamanho de estruturas e confecção de cortes anatômicos para descrever as características desses organismos e conhecer quanto variáveis elas são em indivíduos da mesma população. Tais dados são comparados com os obtidos em estudos realizados em todo o mundo e, quando necessário, são feitas novas observações.
Corte anatômico do crânio de Characidium onca, indicando algumas das características avaliadas.
Com todos esses dados em mãos, os pesquisadores podem descobrir a qual grupo de espécies com parentesco evolutivo o organismo pertence ao detectar características típicas de todas as espécies do grupo. Então é possível avaliar a lista de características que são exclusivas de cada espécie próxima. Caso seja constado que os indivíduos analisados têm conjuntos de características diferentes das espécies conhecidas pode-se concluir que se trata de uma espécie nova.
Os indivíduos utilizados para descrição da espécie foram coletados, em sua maioria, na Reserva Ecológica do IBGE, sendo todos os indivíduos provenientes do córrego Taquara e seus tributários (córregos Roncador, Onça e Tapera). Segundo um dos autores do estudo, Mauro Ribeiro, mesmo realizando inúmeras coletas em diversos rios na região desde os anos 80, ele nunca encontrou essa espécie em outros córregos. Com esses dados, os autores estimam que a área de ocorrência atual do Characidium onca seria de aproximadamente 15 km².
Além de ter uma distribuição tão restrita, a nova espécie foi descoberta em uma situação delicada. O entorno do conjunto de unidades de conservação em que foi registrado o peixe tem observado crescente processo de urbanização e expansão agrícola, além de importantes mudanças na hidrologia. Isso porque os córregos em que foi registrado a nova espécie deságuam num trecho de cerca de 7 km do ribeirão do Gama (beirando área urbana) o qual deságua no Lago Paranoá. Este lago artificial, fruto da construção de uma barragem no rio Paranoá em 1959, apresenta ambientes ecologicamente bastante distintos do antigo rio Paranoá.
De acordo com os critérios usados em todo o mundo pela União Internacional pela Conservação da Natureza (IUCN), os quais são adotados no Brasil pelo ICMBio, a espécie tem características que permitem que ela venha a ser incluída na Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas na categoria de “Criticamente em Perigo”. Hoje a Reserva Ecológica do IBGE abriga 30 espécies de animais oficialmente classificados como ameaçados de extinção. Dentre elas há uma espécie de peixe, o pirá-Brasília (Simpsonichthys boitonei), que também tem distribuição restrita ao Distrito Federal.
O artigo completo com a descrição da espécie pode ser acessado no endereço: http://dx.doi.org/10.1590/1982-0224-2020-0061
Córregos com registros de Characidium onca (linhas azul escuro). Na imagem é visível a região central de Brasília, o Lago Paranoá, trecho do ribeirão do Gama conectando a área de ocorrência da espécie com o lago (linha azul claro) e a Reserva Ecológica do IBGE (linha vermelha).